O discurso de ódio - e o mais que certeiro cancelamento de "Roseanne"
- Ricardo Sodré
- 2 de jun. de 2018
- 7 min de leitura
Atualizado: 27 de dez. de 2018

É engraçado quando queremos escrever sobre um assunto, ele meio que te persegue, até você começar escrever sobre - eu estava querendo produzir algo sobre liberdade de expressão desde o dia 29/05, quando Roseanne foi cancelada pela ABC, depois que a atriz protagonista e produtora da série fez uns comentários racistas no Twitter. Mas eu volto para esse assunto daqui a pouco, porque o que me fez ter o estalo e começar a escrever esse texto, não foi exatamente o caso da série estadunidense.
Eu estava há pouco naquela rede social do Mark Zuckenberg, e chegou ao meu conhecimento, uma polêmica que vem acontecendo lá no Pará há um tempo (e que, a principio, não tem nada a ver com cultura pop/geek). A aluna do mestrado em Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA), Dienny Riker, sob a orientação do Prof. Victor Sales Pinheiro, produziu uma dissertação com a seguinte tese “O Bem Humano Básico do Casamento na Teoria Neoclássica da Lei Natural: Razão Prática, Bem Comum e Direito”, onde defende a concepção do matrimônio como um direito natural das pessoas heterossexuais, ou seja, "casamento é entre homem e mulher" - gente, o que é uma abordagem bem antiga, que tem nomes por trás, que inclusive, embasam o trabalho da estudante: John Finnis e Tomás de Aquino. E vocês podem ler mais sobre o caso aqui, aqui e aqui, porque não tenho paciência para ficar explicando e dando palanque para esse tipo de defasagem intelectual.
Mas como para bom entendedor, meia palavra basta, fica claro aqui qual é a desse trabalho: contrariar o direito ao casamento homoafetivo e defender que o casamento tem que ser entre homem e mulher por uma série de motivos que eu não poderia me importar menos, porque infelizmente, são argumentos academicamente datados. E era de se esperar que a parcela progressista da sociedade não ia achar lindo isso, né? Pronto, o movimento estudantil criticou a tese, cobrou posição da instituição etc, veio o destaque da mídia e tá pronta a polêmica. Mais rápido e fácil que fazer o sorvetinho com aquela famosa marca de danone.
Gente, venhamos e convenhamos, é uma produção acadêmica com um viés que é puramente ideológico, e não científico. Mas até aqui, para mim, Ricardo, ela tem todo o direito de produzir a pseudo-ciência dela, o mais enviesada que ela queira (eu nem acho que isso seja um problema). o que me chamou atenção aqui nesse caso, não foi a tese dela. O que me surpreendeu mesmo, foi ver os comentários em defesa da tese por parte da galera conservadora: a bandeira levantada é a da liberdade de expressão, do respeito pelo pluralismo de ideias, e essas coisas que a gente conhece muito bem.
Mas é muito importante que a gente tenha uma coisa muito clara: essas pessoas quando adotam esse discurso, não defendem direito de expressão e muito menos pluralismo de ideias. Na verdade, o que elas defendem é o discurso de ódio, elas defendem produções que legitimem o preconceito delas. E sabe por que eu digo isso? Porque essa é a mesma galera que enfia o discurso da liberdade de expressão e do pluralismo de ideia goela abaixo, e boicota beijo homoafetivo em produções televisivas, censura nudez em obras audiovisuais e artes plásticas, impede a palestra de Judith Butler, censura sátiras ou releituras de personagens religiosos ou proíbem o que pode ou não ser abordado em sala de aula por um professor. Vocês enxergam aqui a seletividade e hipocrisia, né? Pois muito que bem.
Agora, vamos voltar rapidinho ao cancelamento de Roseanne, e calma que tudo vai fazer sentido nesse texto ainda.

Roseanne foi resgatada pela ABC esse ano, e é uma continuação-revival da série que fez sucesso nos anos 80 e 90 (algo parecido com a proposta das novas temporadas de Arrested Development ou da série Fuller House). E depois desse tweet racista da atriz protagonista e produtora, a ABC decidiu cancelar a comédia, que foi a sensação do ano na TV norte-americana, batendo recorde de audiência e tudo o mais, inclusive já tinha sido renovada para mais uma temporada. A presidente da rede ABC, Channing Dungey, divulgou um comunicado curto e grosso, dizendo que “a afirmação de Roseanne no Twitter é abominável, repugnante e incompatível com nossos valores, e decidimos cancelar a série”.
Sinceramente, eu acho que essa tragédia foi bem anunciada. Primeiro, essa atriz Roseanne Barr já era conhecida por ser eleitora do Trump, conservadora e por acreditar em todo tipo de teoria da conspiração de direita. E depois, a proposta da série era justamente trazer uma personagem apoiadora do Trump, a protagonista Roseanne, que tinha embate com outros personagens com a visão mais progressista. Imagina uma série com um monte de gente tentando convencer "bolsominions" que eles são babacas, era isso. Eu nem me dei ao trabalho de assistir, sinceramente.
E bom, ficar sem seu programa não foi a única perda que Roseanne sofreu, mas uma série de sanções foram ocorrendo, a série foi tirada de catálogos de sites de streaming, e antes mesmo de ser cancelada, estava perdendo membros do elenco e da equipe que ligaram para a ABC pedindo demissão etc. O ápice para mim, foi quando a atriz tentou justificar seu tweet dizendo estar sob efeito de determinada medicação quando o fez, e a farmacêutica responsável pelo remédio em questão, se pronunciou e disse que racismo não é um dos efeitos colaterais deste. Enfim, vocês podem ler mais sobre toda essa polêmica e seus mais variados desdobramentos aqui.
E eu usei esses dois casos para mostrar que a liberdade de expressão não é, e nunca vai ser discurso de ódio. E não é por acaso que o que aconteceu com Roseanne tem que servir de exemplo, seja no caso da dissertação da Dienny Riker, seja nos casos recorrentes da mídia, e da cultura pop e geek. Esse tipo de discurso violento, agressivo, não pode nunca ser tido como direito de falar o que quiser, a concepção de liberdade de expressão no Brasil e na maioria dos países europeus é muito clara: o exercício dessa liberdade não deve afrontar o direito alheio, como a honra e dignidade de uma pessoa ou determinado grupo. E apesar de no Estados Unidos não funcionar com essa limitação, lá a liberdade de expressão tem uma força muito maior que passa por cima de tudo e todos, a parcela da sociedade estadunidense que já é agredida de tantas formas, já não aceita calada esse tipo de violência travestida de opinião. E a própria sociedade responde à isso, como foi o caso Roseanne.
No Brasil, como eu já disse, isso é papel do Estado: garantir que o direito de falar livremente não atropele outros direitos constitucionais. O nosso país, que é signatário de inúmeros tratados internacionais que preveem o direito à liberdade de expressão, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (OEA, 1969) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966). Nesses, O direito à liberdade de expressão aparece como um direito negativo, ou seja, que não é provido pelo Estado, mas deve ser garantido por este.
E justamente para garantir que as minorias político-sociais, ou seja, as já vítimas de uma sociedade que em sua organização as marginalizam, violentam, segregam e excluem, é que nesses documentos internacionais há, no fundamento dessas ordenações, a premissa de que a garantia dessa liberdade deva favorecer os mais fracos: garantir as vozes dissonantes, a multiplicidade de pensamentos, independentemente do establishment e das forças que operam o Estado.
E existe um ciclo: quanto mais discurso de ódio e incitação direta ou indireta ao ódio, à raiva, ao preconceito, mais agressões essas minorias sofrem e menos direitos elas têm. Isso, porque o discurso legitima essas, e não sou eu quem fala, são dados e estatísticas. Seja no Brasil, seja lá nos EUA, em países de Bolsonaro e Trump, o discurso alavanca os crimes de ódio e essa associação é muito clara quando se analisa o cenário de ambos países. Vocês podem ler mais sobre isso, aqui, aqui, aqui e acolá.

E assim como no caso de Roseanne é importante mostrarmos que como público, como sociedade, que não vamos mais ser complacentes com discursos que matam. Porque o direito do discurso de ódio, é o mesmo direito de matar: você pega a mão do cara que mata a esposa, pega na mão da mulher que joga pedra na menina negra saindo do terreiro, pega na mão do coronel que manda um pobre coitado matar índios que estão em uma terra estratégica etc. Não existe mais espaço na sociedade moderna para passarmos pano, aceitarmos como normal, um discurso que perpetua toda essas mazelas sociais.
Uma matéria saiu no EW, com a seguinte manchete: "a demissão de Roseanne Barr: foi só um tweet errado?". E no texto, há apontamentos da série de declarações, frases, textos de Roseanne Barr que são problemáticos, e eu só consigo pensar em como uma pessoas dessas não deveria sequer estar empregada. E mesmo depois do ocorrido, a atriz ter tentando se fazer de vítima, pelo amor de deus. Como eu já disse antes, era uma tragédia anunciada, os próprios produtores e executivos da emissora, pediam para ela se afastar do Twitter para não falar nada que pudesse ofender alguém ou algum grupo. Vocês entendem o absurdo que é a construção dessa situação?
E curioso, existe um rap nacional, "O Pano Rasga", que na letra diz "protetor de fascista é fascista da mesma laia, não adianta passar pano, que o pano rasga". E acho que é isso que temos que parar e tirar como mensagem, não adianta separar artista da obra (gente, qualquer artista sabe que isso é impossível, se uma obra não traduz quem a fez, ela é horrível), não adianta ficar procurando justificativas para manter esse povo na mídia, na indústria, trabalhando como não tivesse nada errado com seu comportamento. Tem muita coisa errada sim, e elas precisam saber disso. De um jeito ou de outro, se não dói na consciência, que doa no bolso.
E isso nós temos que levar para todos os âmbitos da nossa vida, seja pessoal, profissional, seja como consumidor, seja como público. Porque é assim que a sociedade se molda e se corrige, não esperando que as mudanças caiam do céu num ato de benevolência divina. A gente aprende, se não pelo amor, pela dor.
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