A temporada final de Merlí, e a competência da filosofia como série teen
- Ricardo Sodré
- 24 de mai. de 2018
- 8 min de leitura
Atualizado: 27 de dez. de 2018

compte amb els spoilers
(cuidado com os spoilers)
Tem alguns poucos dias que terminei Merlí, que para quem não sabe, foi finalizada agora na sua terceira temporada, e tinha muito tempo que eu não sentia um vazio desses com um final de uma série. É engraçado como nos acostumamos tanto a acompanhar algo, ansiar pelos próximos episódios, pelas próximas temporadas, que quando acaba, é como se estivéssemos lidando com um término de relacionamento. De verdade, eu terminei de assistir em uma madrugada - já passava das 3 horas da manhã, e me vi obrigado a ir dormir sentindo uma tristeza, um aperto no coração, isso que a série já tinha me feito chorar pelos acontecimentos dos seus dois últimos episódios. Então, vocês conseguem imaginar como que fui dormir.
E engraçado, que comecei a série do jeito mais aleatório possível, estava sem encontrar nada para ver na Netflix, e acabei trombando com Merlí por acaso, escondida ali no catálogo. Dei uma chance, e devorei a primeira temporada - na época, só tinha a primeira temporada - e me encantei. Fui um dos poucos fãs que ficaram enchendo a paciência no Twitter do perfil do streaming, perguntando sobre as próximas temporadas - já que por fugir do eixo Estados Unidos, Inglaterra e Canadá, estava muito difícil encontrar as novas temporadas para baixar. Depois de esperar o que pareceu uma vida, a segunda e terceira temporadas finalmente entraram para o catálogo brasileiro do streaming, em um intervalo bem curto de tempo entre uma e outra, diga-se de passagem.
Merlí, que é uma série catalã, produzida pela TV3, tem uma premissa muito simples: narrar a história do professor de filosofia que dá nome a série e sua relação com os que formam a comunidade estudantil em que está inserido. Tão simples é o que a série se propõe a ser, que fui assistir sem esperar muita coisa. E três anos depois, que surpresa, meus amigos. Que surpresa.
Isso, porquê quando pensamos ou falamos em série teen, acredito que venha à cabeça os esteriótipos exagerados do high school que os Estados Unidos enfiou no nosso imaginário; os excessos de uma juventude irreal na sua rebeldia sem causa da Inglaterra; ou, no máximo, a abordagem conservadora da Malhação (salvo a temporada anterior Viva a Diferença), de adolescentes santificados, cujo maior pecado em geral, é engravidar por acidente, quase como um castigo por transar. E Merlí não é nada disso.
só pela abertura da série, ao som de "El vol del borinot", o "Voo do Besouro", de Nikolai Rimski-Kórsakov, já percebemos que se trata de uma obra maravilhosa
E longe de mim dizer que os esteriótipos adolescentes não estão ali na turma de "peripatéticos", como Merlí os chama. Estão sim. Mas só para serem desconstruídos ao longo das excelentes três temporadas, e mesmo nos clichês e esteriótipos que surgem na trama, a série busca sempre outra abordagem, que fuja da curva comum. Quando trata de um transtorno psicológico, a série optar por falar sobre a Síndrome do Pânico ou agorafobia que tem o personagem Ivan (Pau Poch), fugindo da abordagem da depressão e suicídio, já saturada na mídia.
Quando se discute Berta, a moça com uma sexualidade mais aflorada, não vemos a exaltação da liberdade sexual, mas sim, o entendimento dos desejos dessa, mostrando que a vida pode ser mais (mas sem, em nenhum momento, o roteiro condená-la por sua conduta sexual, pelo contrário, inclusive, no episódio final, temos a prova de que ela seguiu explorando sua sexualidade).
Quando se fala em orientação sexual, a série não se prende ao drama de personagens "no armário", mas com naturalidade no caso de Pol (Carlos Cuerva, dá vida ao personagem que era o clichê mulherengo e bad boy), que passa três temporadas descobrindo sua orientação (que pode ser bi, pan, ele nunca chega a se rotular, mas sim, a viver e praticar), e termina a série, surpreendentemente, casado com Bruno (David Solans). Ou com a normalização, como é o caso de Oliver (Iñaki Mur) , que gay assumido, nunca passou por nenhuma questão para aceitar sua sexualidade, e rapidamente suprime qualquer piada homofóbica por ser mais "afeminado" (em aspas, por eu achar essa palavra extremamente inadequada) que Bruno, e o seu desenvolvimento segue outro caminho, que pouco tem a ver com sua sexualidade.
E sobre transsexualidade? Que ao fugir de todo o debate sexual da questão, em um dos melhores episódios da série, quase em uma homenagem à Ela É O Cara, e coloca Quima (Manel Barceló), uma professora transsexual, em paralelo com a história de Marc (Adrián Grösser) que vive no seu desejo de ser ator, a transformação do seu eu. É criar um paralelo com a arte, criado para entendermos a construção social que é o gênero e a transgressão que é o ato de não se identificar com o determinado.

E esses são só alguns dos pontos que a série toca, mas também fala de perdão, de relações não-monogâmicas, luto, liberdade sexual, morte, maternidade adolescente, adoção, dependência de drogas, pais autoritários, falta de dinheiro, emprego da juventude, educação, corrupção, escolha da carreira, sistema educacional etc. A lista segue sem parar, e o que fica bem marcado nas três temporadas é a continuidade do roteiro, em sempre relembrar como aquelas personalidades vem sendo construídas. E o grande êxito de Merlí é a sutileza de tratar de tantos temas, sem em nenhum momento soar didática, perder a naturalidade.
E todos esses temas tem como pano de fundo: a filosofia. A série traz um filósofo por episódio, o que levanta a qualidade do debate, e ainda tem um toque de crítica, ao exaltar a importância das ciências humanas - sem precisar ficar falando sobre, simplesmente com sua trama, sua existência. E isso no cenário do Brasil, com o governo golpista e sua reforma do ensino médio, é extremamente atual. O fato é que usar a filosofia para trazer luz às discussões atuais é de uma riqueza textual, acadêmica e cultural, que nem cabe em palavras.
E se vocês acham que toda essa metaforização, o uso de paralelos e analogias, e aplicação de conceitos filosóficos faz de Merlí uma série chata, tão lamentavelmente enganados. Os episódios são tomados de dinâmica e energia, nem eu sei como o criador consegue manejar humor, leveza, romance, drama, tensão e manter a estrutura pop que esse tipo de série pede. A trilha sonora é um show a parte, não à toa, existe uma discografia associada a série nos sites de streaming, uma mistura de música clássica, com boa música pop catalã, com a sonoridade claramente escolhida para não ser regional demais ou muito datada, e o bom e velho pop internacional, que já conhecemos.

O grande quê de Merlí, é que esse universo da série consegue estar encaixado em qualquer contexto do mundo, inclusive, esse parece ter sido um cuidado da série: garantir que essa riqueza do texto fosse acessível. E é, sem dúvida, uma das produções que eu conheça, que mais foi bem sucedida na tradução do academicismo para uma recepção e absorção simplificadas em conceito, mas sem perder em linguagem ou no conteúdo do que se quer passar. Aliás, já que falei em linguagem, outro ponto positivo da série, e esse é exclusivo para quem não é catalão, é o contato com esse idioma - que soa como uma mistura de francês e espanhol, e com toda a cultura de lá. Mesma Catalunha que esteve no centro de debates internacionais, e que a série também toca na questão do separatismo e nos ajuda a ter uma ótica interna da situação da região.
E na correnteza de acertos da série, o elenco é outro. E dá vontade de escrever só essa frase, porque nem precisa de argumentação para justificar. O que eu poderia dizer aqui é o quanto dá vontade de transar com o elenco todo, os jovens, os adultos, com todo mundo.
Francesc Orella, que vive o protagonista, é genial, imprime com uma precisão as nuances de sabedoria e imaturidade de Merlí. Destaco aqui o episódio da terceira temporada em que o personagem se vê no seu aniversário, se sentindo sozinho. É uma atuação tão delicada ali, silenciosa. Aliás, é nessa terceira temporada que Merlí tem seu grande amadurecimento, né? O personagem acostumado a ser o centro das atenções, é colocado de de escanteio, e tem que lidar com seus medos. E então, o homem que já era envolvente e repugnante nas medidas exatas, encontra uma camada de tristeza e solidão. E há de ser dito, que Merlí também é sexy, o que é difícil de ser construído em um personagem mais velho, e fora dos padrões de beleza.
E as ambiguidades do protagonista, passam por todos os outros personagens, e é comum que o espectador passe a odiar e amar as mesmas pessoas alternadamente, como acontece com Joan (Albert Baró) - que passa de vítima do autoritarismo e conservadorismo dos pais, a ele mesmo, ser o controlador e autoritário na sua relação com Mônica (Júlia Creus). E para que isso fosse bem construído, a demanda por atores competentes era visivelmente uma preocupação, dos adultos aos mais jovens, todos são excelentes - sem excessões, cada escolha é absolutamente própria para aquele papel. Não há nenhum desnível e todos eles estão acima da média. Destaco Carlos Cuevas, que faz o Pol, Elisabet Casanovas que é nossa Tània, que tem uma construção de personagem maravilhosa na sua sutileza, o Albert Baró, a Laia Manzanares, que entrega uma Oksana excelente, e foi uma adição certeira na série, o Pau Poch (Ivan), e Anna Ycobalzeta, que faz Miriam, a mãe de Ivan.

Infelizmente, nem tudo são flores, e é justamente no elenco que se encontra uma das problemáticas da série: o elenco é muito branco. No elenco regular, são poucos os que poderiam ser considerados não-brancos, mas eu pesquisei e o debate racial que é feito aqui, não pode ser feito do mesmo jeito a falar sobre Merlí, o que não justifica, claro, que numa série tão progressista, não haja diversidade étnica.
Outra questão que me incomodou nesses três anos de série, é que o roteiro escorregou em algumas tramas, principalmente, quando tentava lidar com o machismo, e em alguns momentos caiu no moralismo. Lógico, isso não compromete o discurso progressista que a série adota, mas é importante que se enxergue essas pequenas falhas, para que cada vez mais, tenhamos produções que não errem mais.
Mais um ponto negativo, e esse é o último, é que o roteiro priorizou alguns personagens, em detrimento de outros - e apesar de isso ser comum em produções adolescentes, chega a incomodar ver que alguns personagens servem só de alicerce para a trama dos outros - e justamente esses, acabam tendo suas tramas solucionadas com muita facilidade, e esse é mais um dos problemas do roteiro, enquanto alguns personagens tem seu desenvolvimento e suas storylines mais preservadas e longas, outros tem conflitos que se solucionam e são esquecidos.
Lógico, que esses três parágrafos negativos, que serve para sermos justos e apontarmos que a série não é detentora da perfeição, não comprometem em nada a qualidade do produto final. E são apenas apontamentos que ficam a título do que poderia ter sido melhorado, mas o saldo de Merlí é o de uma obra rica, que retrata a adolescência perfeitamente, levanta debates que é impossível com que os jovens não se identifiquem, e no seu jeito, delicada, provocadora, inteligente, rica em todos sentidos. No final, a mensagem que o personagem e a série nos deixa é simples: vivam a vida, ao máximo, sendo quem são, lutando por si mesmos. E a que eu deixo para vocês? Assistam a série. Agora.
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